Ainda hoje, a doença do corpo (e, portanto, da existência doente) é a emergência que desfia e extenua o jogo de resultado zero das compreensões, das interpretações, das explicações. A corporeidade doente – a condição do Eu e do mundo que se eclipsam no sintoma do corpo doente, enquanto o sujeito se retrai (dissimulando a si mesmo) numa concretude que apaga toda dimensão metafórica do discurso – pois bem, essa corporeidade doente in ige ainda muitas derrotas à cirurgia, à farmacologia, à psicologia e à própria psiquiatria. Para quem se move em âmbitos terapêuticos, não é raro perceber uma impotência desesperadora pela incapacidade de impedir que um homem escorregue pelo plano inclinado da corporeidade doente. Ao abrigo da “cortina de ferro” do corpo, toda possibilidade de experimentar-se como presença é negada, todo discurso se esvazia de elementos simbólico-metafóricos, constituindo-se, ao contrário, na enrijecida representação de órgãos internos deteriorados ou debilitados. Com o tempo, sintomas e emoções se tornam a única expressão corpórea à qual se acrescenta uma dor que apaga a vivência como única possibilidade de esclarecimento. Como se, mediante o corpo doente, a angústia daquela pessoa encontrasse alívio no espaço de uma pura contenção.
Hoje o sofrimento ou o mal-estar do homem são codificados por meio da medicalização do tratamento. O corpo doente se torna assim, paradoxalmente, o último silencioso espaço dialógico de um homem incapaz de respostas, que enterra as perguntas no corpo, mistificando o próprio discurso na distanciadora neutralidade dos mecanismos fisiopatológicos. As fichas clínicas se parecem cada vez mais com textos nos quais os médicos (modernos amanuenses) transcrevem as histórias dolorosas de parte da humanidade: histórias arquivadas como doenças e sem mais nenhuma possível releitura de sentido. À diferença das grandes civilizações do passado, que deixaram obras de arte que, como monumentos à memória, refletem visões do mundo, nossa época ocultou e silenciou em intermináveis arquivos hospitalares a angústia da existência, selando-a em síndromes clínicas em lugar de deixá-la falar.

3 Comments

  1. Iã Paulo Ribeiro 20 Maggio 2016 at 2:44 pm

    Maravilhoso texto, Mauro! Obrigado pelas palavras. Um forte e saudoso abraço.

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    1. mauromal 20 Maggio 2016 at 2:50 pm

      Obrigado, Iã.
      Em breve vou chegar ao Brasil e nós podemos discutir muitas coisas. um abraço

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