É difícil falar do corpo numa época repleta de fascinações tecnocientíficas tão poderosas. Nessa transformação radical – em que a realidade virtual incorpora os nossos sentidos e a medicina regenerativa, a nanotecnologia e a bioinformática projetam a imortalidade do homem (nanobots híbridos e proteínas sintéticas que poderão reparar 100% das células corporais) – levar a discussão de volta ao corpo significa, hoje mais do que em qualquer outro momento, levantar perguntas incômodas e, em muitos sentidos, escandalosas. O corpo humano nos inflige desde sempre uma derrota radical. Como um hieróglifo indecifrável, provoca feridas a nosso narcisismo, a nosso senso de onipotência. No entanto, é precisamente a partir do desmentido de nosso suposto conhecimento sobre o corpo – de seu caráter ambíguo e inapreensível – que a corporeidade se destaca como lugar outro entre Eu e mundo. De fato o corpo não é um dos inúmeros objetos do mundo, mas alguma coisa irredutivelmente minha. Uma só coisa com o que eu sou. Não apenas alguma coisa que possuo: mas um corpo embebido de subjetividade. Eu sou incontornavelmente o meu corpo, mesmo quando oscilo entre ter um corpo e ser um corpo. É assim desde as primeiras etapas da infância. Nunca deixa de me pertencer. Nem sequer quando me é estranho, pesado, indiferente, hostil. Aliás, precisamente isso faz dele um misterioso manancial de sentido e simbolização. Sou Eu-corpo quem realiza a existência e, com meus gestos dou vida a toda significação, expressão, relação. Na comunicação contínua do Eu-corpo com o mundo, e antes que eu pense, os olhos, as mãos, os dedos, o rosto, realizam a todo instante as minhas intenções.
Tornamo-nos médicos por causa do corpo. Mas o corpo é um caminho, não uma meta. Os estudos médicos iniciais de anatomia e fisiologia, ainda que essenciais, infelizmente fragmentam toda representação viva. Só mais tarde a clínica devolverá ao paciente sua cifra de ser humano. Claro, a apalpação, a inspeção, a auscultação, a percussão, os exames de laboratório e mesmo a atividade diagnóstica e terapêutica são meios para acessar a incandescente complexidade do homem. No entanto, seria necessária uma anatomia fenomenológica para adentrar no “vivo” da matéria corporal, para desnudar o mistério da vida. Mas a vida não se encontra nos livros. Aprende-se diretamente dos pacientes. Aliás, são eles a ensinar alguma coisa ao médico. E ademais cada um tem seu corpo: eu, você, ela, ele. Melhor, cada um é seu corpo. O que comunico ao médico diz respeito, sempre e somente, à vivência do meu corpo. Não uso um atlas de anatomia. Os órgãos ou os tecidos dentro de mim não são conceitos anatômicos. Estes, na melhor das hipóteses, dizem respeito à anatomia médica, que é diferente da anatomia vivida, que seria melhor chamarmos de corporeidade. As duas coisas são irredutíveis. Corporeidade, de fato, já significa corpo vivido: o que eu sinto, como eu sinto. Enquanto o médico pensa no órgão anatômico, minha vivência já foi distorcida. Em minha vivência, na verdade há o meu órgão e minha ansiedade, o meu corpo e o meu mundo: coisas inseparáveis.
Noutros tempos o médico escutava tudo. Hoje pede-se a ele que separe, que distinga o dado útil (aquele que remete à fisiopatologia do órgão) daquele inútil (dado espúrio). No entanto, quanta verdade e quanto sentido daquela pessoa há naquele dado que irá se perder? O que será daquilo que ninguém mais ouve: da vivência do corpo, que a medicina esquece, e do corpo, que a psicologia ignora? Com sua dramática unicidade e sua irredutível ambivalência, o corpo nos obriga a escrever novos capítulos.