A memória humana é uma faculdade maravilhosa e enganosa. Embora muitos a considerem um arquivo imutável de experiências e recordações, o que ela guarda não está esculpido em pedra. De fato, as lembranças tendem a desbotar com o tempo, deformando-se e indo ao encontro, mesmo em condições normais, de uma lenta decadência, de um esquecimento fisiológico. E não é raro que gerem em nós perturbadoras sensações de estranheza, fragmentação, não pertencimento e até recombinações ilusórias de imagens e informações que ocupam nossa mente como um caleidoscópio.
A memória e o esquecimento, a imutabilidade e a reestruturação das lembranças são aspectos tanto conflitantes quanto complementares de nossa mente.
Essa ambiguidade tem um valor evolutivo crucial. Se, de um lado, a memória desempenha uma função adaptativa fundamental para a espécie humana, de outro, sem a capacidade de esquecer não aprenderíamos nada de novo, não corrigiríamos nossos erros, não inovaríamos velhos esquemas. Assim, é plausível afirmar que, enquanto a memória tende a preservar a história individual e coletiva, o esquecimento tende a ofuscar, progressivamente, as recordações infantis, os eventos do passado, os empreendimentos coletivos, as antigas lembranças. Não por acaso, os humanos erguem lápides e monumentos para se defenderem do esquecimento.
Essa ambiguidade não se deve apenas à sua natureza vasta e heterogênea, mas também a suas relações intrincadas. A própria natureza polissêmica do termo memória – utilizado por biólogos, psicólogos, antropólogos e historiadores para se referirem a processos e situações muito diferentes entre si, ainda que unidos pelo elemento comum da “flecha do tempo” – dificulta o aparecimento de um significado compartilhado e de fronteiras conceituais bem definidas. A etimologia grega do termo – mneme e anamnesis – espelha uma clara distinção entre a memória como esfera essencialmente intacta e contínua e a reminiscência ou anamnese como exercício de presentificação das lembranças que o esquecimento vela. Em Menon, Fedro e outros diálogos, Platão afirma que todo conhecimento verdadeiro, todo aprendizado autêntico é, na verdade, anamnese, esforço para chamar de volta à mente o que havia sido esquecido.
Hoje, uma época de predomínio cultural do paradigma médico-biológico, a memória (mneme) é identificada como um mecanismo cerebral puro, um arquivo das informações do sistema nervoso central; por seu lado, a reminiscência (anamnesis) é igualada a alguma coisa mais complexa e sutil do que o simples registro dos eventos. A reminiscência, de fato, implica uma reflexão sobre o passado, uma evocação das lembranças prazerosas ou dolorosas, sepultadas ou censuradas, que formam a essência de nossa individualidade. Mas, como é evidente, a disponibilidade do arquivo não coincide necessariamente com sua consulta e, portanto, a mera existência de uma lembrança, boa ou deficitária que seja, não se identifica com o princípio de identidade e de unicidade que decorre da individualidade de nossas recordações, conforme considera Oliverio (2009). Nos últimos anos, os neurocientistas descreveram meticulosamente as bases moleculares, os fenômenos sinápticos e as alterações dos circuitos nervosos da memória, tentando preencher – por métodos não invasivos e multiparamétricos das imagens cerebrais – as lacunas explicativas da pesquisa psicológica. O conhecimento detalhado dessas dimensões poderia parecer pouco relevante aos que veem a mente como um conjunto de vivências diferentes e de experiências privadas e indizíveis. Em diferentes situações ligadas a danos e alterações da função nervosa, no entanto, a interpretação neurobiológica é fundamental para a compreensão do que acontece em nossa mente, como são reestruturadas as lembranças, como se dá o esquecimento.
Tradução: Roberta Barni